35- Na contramão

 Recentemente, uma grande discussão aconteceu sobre a legalidade do aborto de crianças anencéfalas e, no dia 12 de abril de 2012, foi aprovado no Brasil, com algumas regras para a identificação correta da anomalia. Eu não sou a favor do aborto indiscriminado, sou a favor da vida, uma vida digna, mas este assunto precisa de discussão.
         A anencefalia é uma má-formação congênita que atinge cerca de um em cada mil bebês, portanto, ocorrem cerca de três mil casos por ano, colocando o nosso país no quarto lugar em ocorrência da anomalia. A palavra anencefalia significa “sem cérebro”, mas a utilização deste termo não está totalmente correta, porque o tronco cerebral está presente. Mas possuir o tronco cerebral não garante a vida e a sobrevivência após o parto, que se limita a apenas algumas horas ou alguns dias. Segundo o médico docente em genética da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em medicina fetal, Thomaz Rafael Gollop, a chance de sobrevida por um período prolongado é "absolutamente inviável".
         Pode-se identificar esta má-formação durante o pré-natal e, após o diagnóstico, os pais se deparam com a difícil decisão entre vida e morte. Metade das mortes em casos de anencefalia é provocada ainda durante a gestação e, daqueles que conseguem nascer, 99% morrem logo após o parto, e apenas cerca de 1% pode sobreviver por dias. Segundo o professor de bioética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, José Roberto Goldim, "Os que sobrevivem conseguem fazer o movimento involuntário de engolir, respirar e manter os batimentos cardíacos, já que essas funções são controladas pelo tronco cerebral, a região que não é atingida pela anomalia. Alguns não precisam do auxílio de aparelhos e chegam até a serem levados para casa, mas vivem em estado vegetativo, sem a parte da consciência, que é de responsabilidade do cérebro". Na realidade só existe o estado vegetativo com um destino traçado.
         Existem casos extremamente raros em que a sobrevida ultrapassa o esperado, entretanto, não se trata da anencefalia e sim de merocrania, porque existem pequenas porções de cérebro revestidas por uma membrana que protege contra infecções. Mesmo assim, todos os casos também culminam na morte.
         O grande problema desta anomalia é que a gravidez pode ser levada adiante normalmente e muitas vezes a mãe é aconselhada a interromper a gravidez mesmo sem a autorização legal. No Brasil, a interrupção era crime, pois o aborto só era permitido legalmente em duas condições: quando a gravidez resultou de um estupro ou quando a vida da mãe está em risco, o que não é o caso da anencefalia.
         De acordo com estudo da Universidade de Brasília, quase metade dos países membros da Organização das Nações Unidas (ONU) permite a interrupção da gravidez nesses casos. São 94 países, entre eles Austrália, Estados Unidos, Alemanha, Bélgica, Canadá, África do Sul e França. O Brasil não podia ficar na contramão do óbvio, mesmo assim, foi um dos últimos países no reconhecimento da legalidade de aborto anencefálico. Infelizmente, a proibição perdura nos países muçulmanos, em parte da África e em alguns países da América Latina.
         O problema esbarra, como sempre, na intervenção da Igreja e de grupos religiosos radicais. Um representante dos grupos religiosos disse em entrevista a um jornal, que “Devemos dar um enterro digno às pessoas”, e o lado emocional da mãe e da família como fica? Não está sendo discutida a obrigação do aborto e sim o direito da mãe em interromper a gravidez. É uma opção. A mãe religiosa radical pode ter seu filho e seguir o procedimento religioso normal. Fato observado na fala de Marco Aurélio, relator do Supremo, diante de um protesto que reunia cerca de 30 religiosos ligados a grupos antiaborto. Diante da polêmica com esses grupos, o relator citou o evangelho de São Marcos para defender a separação entre Estado e Igreja. “Dai a Cesar o que é de Cesar e a Deus o que é de Deus” e continuou “Deuses e Césares têm espaços apartados. O Estado não é religioso. Tampouco é ateu. É simplesmente neutro”. 
         Mas esta atitude de grupos religiosos não é novidade. Podemos lembrar a intervenção da Igreja contra a utilização da camisinha para evitar o flagelo da Aids na África e na aprovação da utilização das células troncos embrionárias para estudos que poderão salvar tantas vidas ou permitir vidas dignas a muitas pessoas. E não estou voltando no tempo, porque a Igreja teria que pedir muitas desculpas à humanidade. O problema é que muitos fiéis não são bem informados ou possuem pouca memória, voltando a soltar suas velas ao vento na contramão da vida digna. Sugiro uma leitura de outro artigo que fortalece o que aqui falo (O pecado do fiel).
         O não reconhecimento do aborto anencefálico seria um atraso da civilização humana sem quaisquer condições de medida. Seria a sobreposição das tradições sobre a ciência, das crenças sobre a dignidade humana. A Organização Mundial da Saúde reconhece a anencefalia como doença incompatível com a vida, portanto, o aborto anencefálico não é uma eutanásia pré-natal arbitrária, e não ofende o princípio da dignidade humana (do feto). É uma ofensa à dignidade da gestante quando não é permitido.
         Não se pode confundir Direito com religião. Ciência é evidência e razão, diferente da crença que deve se limitar à fé. A religião não pode contaminar o Direito. As crenças não podem ditar regras superiores à ciência. Não se pode, em pleno terceiro milênio, conceber que um juiz possa ditar sentenças "segundo a dogmática cristã... de acordo com suas convicções religiosas". Entretanto, a separação do Estado frente à Igreja não prega o ateísmo. Cada um é livre para professar sua religião e ter suas crenças ou não acreditar em absolutamente nada. Só não se pode conceber, em pleno século XXI, qualquer tipo de confusão entre religião e Direito. É no que acredito.

Edson Perrone

ecperrone@gmail.com

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